sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Por que "O Grande Parafuso" ?

O Jogo da Amarelinha ("Rayuela"), de Julio Cortázar, é um dos melhores livros que eu já li. Seu conteúdo e forma são tão originais, profundos e criativos que, desde que tomei a obra nas mãos, há uns três anos, influenciaram dali por diante o meu jeito de pensar e viver a vida.
O trecho abaixo foi retirado do capítulo 73, que contém o conceito do "Parafuso", uma espécie de parábola, em que Cortázar - usando o fictício filósofo Morelli - afirma que “Tudo é escritura, ou seja, fábula”, e que “A nossa verdade possível tem de ser invenção...”.

"Num dos seus livros, Morelli fala do napolitano que passou anos sentado à porta de sua casa, olhando um parafuso no chão. De noite, pegava-o e guardava-o debaixo do colchão. O parafuso foi primeiro uma simples piada, uma gozação, uma irritação comunal, reunião de vizinhos, sinal de violação dos direitos cívicos e, finalmente, um encolher de ombros, a paz, o parafuso foi a paz, ninguém podia passar pela rua sem olhar de soslaio para o parafuso e sentir que ele era a paz. O cara morreu de uma síncope e o parafuso desapareceu assim que os vizinhos chegaram. Um deles o guardou, talvez o olhe em segredo e o estude por todos os lados, voltando a guardá-lo e indo para a fábrica, sentindo algo que não compreende, uma obscura reprovação. Só se acalma quando tira o parafuso do seu esconderijo e o olha, fica olhando até ouvir passos e ser obrigado a escondê-lo rapidamente. Morelli pensava que o parafuso devia ser outra coisa, um deus ou algo assim. Solução demasiadamente fácil. Talvez o erro tenha sido aceitar que esse objeto fosse um parafuso, tão somente por ter a forma de um parafuso. Picasso pega um automóvel de brinquedo e o converte no queixo de um cinocéfalo. É bem possível que o napolitano fosse um idiota, mas também pode ter sido o inventor de um mundo. Do parafuso a um olho, de um olho a uma estrela... Por que entregar-se ao Grande Costume? É possível escolher a tura, a invenção, ou seja, o parafuso ou o automóvel de brinquedo (CORTÁZAR, 1970, p. 338)."

O "Grande Costume" seria o conformismo, a pasmaceira, a inércia diante da realidade que nos passa aos olhos. Ou seja, a inexistência. Mais do que dar sentido à existência, precisamos existir. E para existir, precisamos reinterpretar, reinventar a realidade. O "Grande Parafuso" seria então a criação de um novo jeito de ver as coisas e a vida. A criação de nossa própria verdade, nosso próprio mundo.

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